sábado, 17 de janeiro de 2015

Da "camarotização", da cafonice e outras vivências

Em uma das minhas postagens anteriores, eu mencionei a minha intenção de viajar no final do ano passado, já que teria férias coletivas do meu trabalho. E foi o que eu e meu marido fizemos: passamos uma semana sensacional no sul da Bahia (Porto Seguro e seus distritos de Arraial d'Ajuda e Trancoso).
Como não queríamos qualquer tipo de muvuca, nos hospedamos em Arraial. Decisão mais que acertada, porque é uma "vibe" completamente diferente da de Porto Seguro, apesar de pertencê-la: tranquilidade, pouco movimento, lojas que funcionam das 16 às 23h, gastronomia diversificada, bom som (ouvi um bom blues num dos becos da vila) e pessoas de conversa fácil. Adoramos o local e muito provavelmente voltaremos nas próximas férias, pois lá conseguimos conciliar tudo o que gostamos – o que não é nada fácil ao viajar. Mas o que me chamou a atenção na minha viagem foram dois pontos: o luxo versus a simplicidade e a visita a uma reserva indígena.

Como alguns devem saber, um tema bastante disseminado e debatido nas redes sociais e de certa forma na mídia foi a "camarotização" da vila de Trancoso, devido a um artigo escrito pela consultora de moda Glória Kalil [Ah, para os amigos de fora do país, essa expressão foi cunhada pela banca de redação do último vestibular da Fuvest, cujo tema foi algo como a "camarotização da vida"]. Dentre vários argumentos bem consistentes, ela resume que todo esse luxo em torno de Trancoso não é nada chique (ela usa chic, fazendo uma alusão ao título de seu livro do mesmo nome). Nunca pensei que um dia eu iria concordar com Glorinha. O link do texto é este aqui:

http://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2015/01/07/camarotizacao-de-trancoso-nao-e-nem-um-pouco-chique.htm http://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2015/01/07/camarotizacao-de-trancoso-nao-e-nem-um-pouco-chique.htm

Como esse artigo foi publicado justamente na época em que viajei para lá, nada mais oportuno dar meu depoimento.

Resolvemos passar uma tarde em Trancoso e fomos de Arraial para lá de ônibus. Coisa fácil, pois ele saía da balsa que vinha de Porto Seguro e passava em frente à pousada em que ficamos. O caminho foi tranquilo, de estrada asfaltada, porque até há pouco tempo era complicado chegar até lá, conforme nos disseram.
Quando o ônibus foi adentrando à vila, reparei que somente a avenida principal era asfaltada e as demais eram de terra. As casas e o comércio eram tão simples, beirando à precariedade, que, na hora, me lembrei da periferia de qualquer grande cidade brasileira. Daí, o ônibus nos deixa no ponto final: a famosa praça conhecida como "Quadrado". O Quadrado nada mais é um extenso gramado com casinhas coloridas e árvores frondosas, com lâmpadas, nas laterais. Há uma igreja histórica e um mirante com vista ao mar e à vegetação. Uma graça. Mesmo. Mas era só isso.
Logo que chegamos, um menino de bicicleta se aproximou de nós perguntando se queríamos que ele nos acompanhasse até o mirante para nos contar a história da vila. Já traumatizados com a fama de "Oscar Freire" de lá, perguntamos o quanto ele cobrava, pois não dissemos tínhamos dinheiro como os outros turistas que lá frequentam [e não tínhamos mesmo, só cartão]. O garoto disse que qualquer dois reais já estava bom. Deixamos que ele nos contasse a história de lá. Ele explicou que na escola da vila há um projeto de formação de guias-mirins para recepcionar os turistas e, com isso, fazer que a história do local não se perca. E realmente ele sabia muito da história desde a invasão portuguesa. Contou-nos a respeito das casinhas coloridas, do valor delas (em média R$ 3 milhões), da construção da famosa igrejinha e nos deu dica de uma praia mais em conta. Eu perguntei ao guia Dionísio das tais celebridades que passam o verão e ele me olhou com certo ar de "ninguém merece esses caras" e ele me disse que estavam para chegar o Neymar e sua irmã [oi? irmã do Neymar é alguma coisa nessa vida, gente? Ou estou por fora?], Lionel Messi, Kate Moss, Naomi Campbell e Felipe Massa. Fora que a Elba Ramalho é praticamente dona da vila. Ele nos contou que seus pais eram de fora [pai gaúcho e mãe mineira, ambos artesãos], como a maior parte dos moradores de lá, e nos mostrou um pequeno cemitério no canto do Quadrado. Ele disse que lá só eram enterradas pessoas nascidas na vila de Trancoso, ou seja, pouquíssimas. Pagamos o que tínhamos para o menino Dionísio, nos despedimos e resolvemos entrar. Toda graciosidade, limpeza e beleza do Quadrado ficaram do lado de fora. Nunca presenciei tal abandono em forma de sujeira, entulhos, valas abertas, túmulos violados e bichos andando livremente por eles. Não dava para saber direito quais eram os túmulos, pois deu a impressão de que eles foram colocados aleatoriamente. Comecei a reparar nas inscrições nas lápides [se é que aquela improvisação toda podia ser chamada de lápide, cruz, ou qualquer outra coisa do gênero] precárias: muita, mas muita gente jovem enterrada, principalmente rapazes da faixa dos 20 anos; havia também muitas crianças e, em seguida, moças jovens. E o que mais me chamou a atenção é que as datas não eram antigas, já que, na hora, me veio a questão da mortalidade infantil, fome, falta de saneamento etc. de décadas atrás. Não. As datas eram de 2009, 2010, 2011. Algumas do início dos anos 2000. Fiquei intrigada e muito, muito triste. Só pensava que algo ali não batia com o que eu via do lado de fora.

Em seguida, fomos em direção à praia. Atravessamos uma passarela sobre um manguezal e ali vimos caranguejos amarelos, vermelhos e azuis. Inédito para mim até então. Chegamos à Praia dos Coqueiros, a mais "em conta" segundo nosso amigo guia-mirim. Caminhamos e atravessamos a foz do rio Trancoso para chegarmos à Praia dos Nativos, a mais badalada de Trancoso. Ela até que estava bem tranquila para uma véspera de Natal. Ficamos por lá mesmo. O mar era de águas verdinhas e mornas [e sem algas e corais, ao contrário de Arraial, repleto delas]. A faixa de areia era bem larga, e boa parte dela era coberta por espreguiçadeiras, cadeiras de praia e guarda-sóis diferenciados dos condomínios e mansões com saída para a praia. A partir do ponto em que estávamos, dava para perceber as coisas para o público tipo Oscar Freire. Bateu uma certa preguiça de ver tudo isso, fomos para o mar e, depois, voltamos para a vila procurar algo menos exorbitante para almoçar. Como eu já estava avisada dos preços das coisas, resolvi dar uma olhadinha no que não me esperava: galerias de arte e decoração, lojas de grife como a Carmim, restaurante tailandês, bistrô de comida sei-lá-o-quê, parada de comida orgânica e restaurantes, digamos, mais "convencionais" [sei lá, salmão marinado no terroir de Bourdeaux acompanhado com arroz-negro de Bali]. Resolvemos comer num quilo na entrada do Quadrado. O valor do quilo era igual ao que eu pago na região do Sumaré para almoçar durante a semana, ou seja: caro, mas "menos" pior. Ficamos mais um pouco e resolvemos voltar para Arraial de lotação. A van começou a percorrer as praias da vila atrás de passageiros. Ruas de areia batida em que um carro pequeno deve sofrer muito para percorrer. Mansões enormes, com portões automáticos e cercas elétricas, as ruas de areia. Condomínios luxuosos aos montes, as ruas de areia. Bacanas fazendo sua corrida de fim de tarde à beira da mata virgem com seus tênis Nike e abdômens sarados nas ruas de areia. Eu olhava tudo aquilo completamente embasbacada e entristecida. Como pode aquele lugar tão bacana, com toda uma história, simples, de gente idem, acolhedora, de papo fácil, ser invadido daquela forma e se transformando numa mistura de Saint-Tropez com Ibiza? Essa foi a pergunta intrigante que ficou no ar. Mais do que uma simples ida a um local com praias, a ida a Trancoso foi uma experiência sociológica.

Em suma, é brega, é cafona esse tipo de luxo atribuído a Trancoso. O lugar em si não tem nada demais. É uma vila de pescadores e só. Mas alguém resolveu dizer que lá é glamouroso e todas as "glamurettes" vão desfilar suas grifes em forma de pano.

Quanto às outras vivências...

Outra coisa que marcou demais foi a ida à Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, em Porto Seguro. Foi uma experiência tão marcante e intensa que não esquecerei. Nunca fui muito ligada em cultura e mitologia indígenas, confesso, mas, ao ouvir a história de luta e resistência daquela etnia, depois ver um de seus rituais e conhecer a sua rotina, passei a respeitar os pataxós. Essa foi a mesma reserva que a seleção alemã visitou na época da Copa do Mundo. Acho que o ritual dos índios deu uma força para o time para ganhar o título...

A experiência foi tão bacana e singular que não há palavras para descrevê-la. Só sei que a visita à reserva foi uma experiência antropológica.

Toda vez que viajo, procuro extrair esse tipo de experiência que une o contraste, o belo x feio, o papo com o morador, comer o que ele come, se "perder" pela cidade, enfim, fazer que isso transcenda a uma simples viagem de férias de fim de ano.



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