sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Rito de passagem?

Hoje à tarde saiu a lista de aprovados do vestibular mais concorrido do País, o da Fuvest, para ingresso na USP e na Santa Casa de SP. Felicidade. Choro de alegria. Caras pintadas nos cursinhos. Na segunda-feira, saiu a lista de aprovados da Unesp. Os mesmos sentimentos.
Na última segunda fiquei muito contente em saber que minha prima está entre os aprovados em Zootecnia num dos campi da universidade. Eu até disse a ela, brincando, que é a segunda neta da nossa avó a entrar na faculdade. Baita orgulho. Ainda mais que esse curso da Unesp é muito bom. Sei disso, pois cheguei a cursar um semestre de Agronomia no campus de Botucatu. E é disso que me recordei nesse dia.

Corta.

Ao mesmo tempo que fiquei muito contente por minha prima, eu fiquei preocupada.

Nesses dias em que são divulgadas as listas dessas universidades, me dá uma aflição tremenda. O que é mostrado é a alegria, as caras pintadas inocentemente e os pulos dos estudantes pelos grandes cursinhos. Principalmente nas propagandas deles. Afinal, é o resultado do trabalho deles, por que não? Entretanto, o que não é mostrado é o day after dessa alegria toda até o dia da matrícula na faculdade.

Ninguém mostra os "nomes" humilhantes a que os estudantes são "batizados". Ninguém mostra a humilhação que os "bixos" sofrem dos "poderosos veteranos", um bando de animais travestidos de estudantes de graduação de USP, Unesp e Unicamp. Mesmo que esse calouro não queira participar dos famigerados trotes, não adianta, ele é obrigado a participar – principalmente se ele vai morar em uma república. As repúblicas, em sua maioria, são qualquer coisa, menos casas ou apartamentos. Ninguém fala da intimidação, da violência física e psicológica, do assédio moral (e também sexual), entre outros. Ninguém fala dos comas alcoólicos que dezenas desses "bixos" são acometidos, porque foram obrigados a beber para agradar os seus veteranos.

As universidades dizem que o trote em suas dependências é proibido e que não podem fazer nada do que rola fora dos campi. Isso é verdade. E isso é caso de polícia. E por que esses atos não são denunciados? Por medo. Por conta do que mencionei antes. A partir do "nome" que você recebe, você é único e todos, mesmo indiretamente, te conhecem. Ai de você denunciar. A represália é certa. As poucas atitudes corajosas que vi quando estive em Botucatu foi a de alguns pais, indignados e amedrontados, denunciar na rádio local e na afiliada da Globo da região. Deu certo? Não me recordo. A mídia faz o alarde por uma semana ou pouco mais, mas depois tudo é esquecido novamente. Até a próxima morte por afogamento, até a próxima overdose, coma alcoólico, queimaduras graves, dentre outras coisas.

A grande burrice que fiz ao me matricular na Unesp foi ter ido para uma república. E das barra-pesadas. Caso de polícia. Tive medo, muito medo naquela época. Diante de tanta humilhação e estresse, fiquei doente - e foi muito pior. Diziam que eu estava com frescura, que era coisa de "bixete nojenta". O meu desespero foi tanto que, por sorte, consegui uma casa para alugar e saí dessa república praticamente fugindo. Claro que ficaram com ódio de mim, tanto que nem podiam ouvir falar o "meu nome". E é claro que eu fiquei com medo por algum tempo, com temor de represálias. Por que a maioria desses "veteranos" perseguem, sim. Livre-arbítrio é algo que não existe quando se é primeiro-anista. Liberdade, pra quê? Afinal, "bixo" não é nada, não tem que gostar de nada, não tem que ter opinião pra nada.
Reza a lenda que há a "libertação dos bixos" em  13 de maio, uma analogia clara à Abolição dos Escravos. Outra mentira. Se a pessoa mora em república, isso perdurará até as férias de final de ano, quando todos, com a maior cara de pau, voltam para suas cidades, suas casinhas, seus papais e mamães.
Essa primeira semana é crucial na vida de qualquer aluno que ingressa nessas universidades. É possível perceber o tipo de curso que terá e, principalmente, com que tipo de gente irá "conviver". Não me arrependo, de forma alguma, de ter abandonado esse curso e ter feito o que realmente gosto. O que mais me revolta é que esse tipo de coisa ainda se perpetua, e com ainda mais crueldade. Eu ficava perplexa com a situação em que muitos colegas meus ficavam, e achavam "legal": – "Ah, mas é uma forma de integração. A gente não sabe nada da cidade e da faculdade e precisamos da ajuda deles, né?" Não. Quantas e quantas vezes saíamos das aulas abarrotados nos poucos carros de nossos colegas de turma, com medo de que fôssemos "sequestrados" para fazermos pedágio para comprar pinga para veterano vagabundo ou para fazer faxina na casa de veteranos estranhos? Me recordo muito bem da vez em que uma colega deu carona para DEZ em seu Uno. Sério. E foi essa mesma colega que me ajudou na minha "fuga" da república. Até hoje não me esqueço disso e sou grata a ela.

E toda essa palhaçada me faz lembrar da tragédia no Rio Grande do Sul. Santa Maria é uma cidade universitária famosíssima, de cursos ótimos e docentes idem. O que isso tem a ver com o tema? Bastante.
Da lista dos alunos mortos no incêndio, a maioria era de que ano? Primeiro. Segundo semestre. E a maioria era de cursos como Agronomia, Medicina Veterinária e Tecnologia de Alimentos. Os dois primeiros são conhecidos por seus requintes de crueldade nos trotes. Quem dirá que esses alunos não foram obrigados a ir naquele lugar nesse dia? Sim, pois até nisso o "bixo" não tem escolha. Ele TEM de ir às festas com os veteranos, sejam elas quais forem. Mas se o "bixo" gosta de metal e os veteranos de sertanejo universitário? Isso não importa, não é mesmo? Quem garante que os meninos e meninas que morreram estavam lá por que gostavam daquela balada? Agora só nos resta lamentar e ficar enlutados.

 Engraçado que esse tipo de "ritual" é um reflexo da sociedade brasileira, tão arcaica, tão troglodita, tão imbecil. É esse tipo de gente que vai "defender as florestas e os animais", "plantar soja", atender à população dos hospitais, dar aula nas universidades... É esse tipo que humilha, que bate, que comete crimes os quais, quase sempre, são deixados de lado.

Por mais que o indivíduo tenha "cabeça boa", o risco de cair nas mãos desses imbecis é grande. Pois tem a questão financeira e, também, de aceitação. Todo mundo quer ser aceito. Contudo, essa não é a melhor forma, para pessoas com o mínimo de normalidade psicológica. É o lado mais selvagem do ser humano que é aflorado nessa relação de poder entre "bixo e veterano". E o poder é bom, dá status, não é verdade? O que me resta é a preocupação com minha prima e com os outros calouros e a aflição por rememorar esse período tão traumático da minha vida.

P.S.: Quero ressaltar que isso não é regra geral. Claro que nem todo mundo participa dessa aberração social chamada "trote". Mas vale o alerta.