terça-feira, 12 de maio de 2015

Memória musical-afetiva

O ano era 1991 ou 1992, não me recordo ao certo. Mas uma das lembranças mais fortes é a de festas que aconteciam nas sextas-feiras à noite na casa da família de um antigo namorado de uma prima minha que morava conosco na época. Como meu pai não permitia que ela fosse à casa do rapaz sozinha (oi?), minha prima sempre acabava me levando.

Era uma casa que ficava do outro lado da rua em que eu morava, e ela ficava num terreno em que havia várias árvores, parecendo uma minifloresta. Eu achava muito insólito aquele lugar. A casa era muito simples, num tom verde-água, num canto atrás dessas árvores. Me lembro como hoje do quanto essa casa era cheia de familiares do namorado da prima e de alguns vizinhos. Me lembro da mãe dele, sempre de lenço na cabeça, servindo petiscos para a molecada e galinhada para os adultos, e sempre dançando e cantando. Me lembro de alguém tocando violão, assim como da alegria e do amor-próprio dessas pessoas. Foi lá, pela primeira vez, que eu ouvi frases como “Aqui é black” e “Sou negro, sim, com muito orgulho”. Eu achava o máximo.

A memória mais pujante que tenho dessas reuniões é a musical: eu não tinha a mínima noção, claro, mas lá eu fui apresentada a artistas como Stevie Wonder, Ray Charles, Michael Jackson e outras maravilhas da música negra norte-americana. Talvez por isso eu goste desses caras. Talvez, não; tenho certeza. Nessas festas também rolava Jorge Ben (quando ainda era só “Ben”, mas não achava tão legal quanto os outros) e Trio Esperança. Como não esquecer da música da “festa do Bolinha”? Do vinil da capa verde-bandeira com a foto P&B do trio? Das inúmeras vezes em que ouvi o disco, já que o namorado da prima sempre emprestava seus álbuns? [Dentre eles o clássico beneficente USA for Africa (“We are the woooorld... We are the childreeen...”), e ela chamava a molecada da rua para ir lá na minha antiga casa para cada um “cantar” uma parte da música de letra quilométrica. Eu não tinha noção de quem era quem, eu só sabia dos tipos das vozes que eu curtia, que eram a do Bob Dylan e do Bruce Springsteen (acho que era uma previsão do que eu me tornaria fã anos mais tarde)]. Hoje em dia, eu só tenho a agradecer esse cara que foi namorado da minha prima. Infelizmente, não sei por onde ele anda, uma pena. Essa recordação de discos, artistas e festas veio à tona há uns dois meses, quando eu e meu marido fomos ao show da Angélique Kidjo, no Sesc Vila Mariana. Enquanto aguardávamos a apresentação, narrava-se a programação para os próximos dias. Um dos shows seria o do Trio Esperança, do qual havia ouvido falar pela última vez nesses anos longínquos da infância. Eu esbocei uma reação do tipo “Nossa! Trio Esperança ainda existe!”. Meu marido fez aquela cara de “Oi? Quem?”. Mais tarde, mostrei a ele a tal da música do Bolinha. Se esse grupo era bom ou não, ainda não cheguei à conclusão. Só sei que fazem parte de minha memória, pura e simplesmente. 



Ah, e 1991/92 era a época de “Black and White”, do Michael Jackson, do álbum Dangerous. Daquele videoclipe ultramoderno para a época (imagine só, passava no programa da Xuxa!). Eu, uma criança de 7, 8 anos, simplesmente pirava. A molecada pirava. As mães piravam com seus filhos pirados. Eu tinha uma amiguinha vizinha que colocava o disco para a rua inteira ouvir todo o santo dia. Odiava o barulho ensurdecedor, mas amava a música e sabia o disco de cor. As mães também piravam com as filhas que piravam na Madonna na época do Erotica. Como não havia a atual onda do politicamente correto, me lembro de quando ela veio fazer shows aqui no Brasil pela primeira vez. Foi aquele escândalo, mas todos os programas de TV passavam trechos de sua apresentação o dia todo (acho que até no programa da Xuxa). Naquela época, meninas da minha idade queriam porque queriam aquele bustiê preto pontudo da Madonna. As mães piravam. A minha não. Se isso tudo acontecesse hoje em dia, acho que a Madonna seria processada, deportada do Brasil etc. Só acho.

Depois dessa fase, não me recordo muito do que fazia a minha cabeça, pois, em seguida, vieram tempos um tanto sombrios, em que me vi forçada a crescer antes do tempo. Me mudei daquele bairro e fui morar com os meus avós. A inocência estava se perdendo antes do tempo necessário, mas a magia daquelas imagens e sonoridades da infância ecoa até os dias de hoje.


terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Rito de passagem? (o retorno)

Ontem, 23/02, foi o início de mais um ano letivo nas maiores universidades do País. E todo início de ano letivo me traz lembranças desagradáveis e traumáticas. Eu já comentei a respeito do assunto “trote” n’O Fustigo no ano passado, no link http://ofustigo.blogspot.com.br/2013/02/rito-de-passagem.html . E vou comentar de novo, porque, enquanto houver esse tipo de violação da integridade humana, não me cansarei de abordar o assunto.
Todo começo de ano letivo me angustia. Hoje pela manhã, antes de sair para o trabalho, assisti a uma excelente reportagem de uma série que vem sendo exibida nesta semana, do Jornal da Band. O link do resumo da série é este aqui: http://noticias.band.uol.com.br/cidades/noticia/100000737848/serie-do-jornal-da-band-mostra-estupidez-dos-trotes.html

No final de 2003, prestei o vestibular da Fuvest para o curso de Engenharia Agronômica da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (que hoje pertence à USP), a famosa ESALQ, de Piracicaba. Fui relativamente bem nas duas fases da prova e, por pouco, não entrei nas primeiras chamadas do curso. Ainda bem que não ingressei. O motivo está no próximo parágrafo. Paralelamente, prestei Agronomia para a Unesp de Botucatu, e lá eu passei na primeira lista de espera. O que era alegria se transformou em desespero. Mas voltemos à ESALQ.
A série de reportagens da Band, em seu primeiro episódio, tratou justamente do trote da ESALQ. Da selvageria que acontece nas repúblicas da cidade, e a conivência da faculdade e da cidade de Piracicaba. Sim, CONIVÊNCIA das prefeituras locais e da população, pois o trote acontece nas ruas, avenidas, parques, baladas, terrenos baldios, entre outros lugares. O repórter foi à ESALQ e, é óbvio, ninguém quis comentar o assunto. Fora dela, o jornalista foi a uma república de rapazes da cidade famosa justamente por seus trotes violentos: Senzala. O nome já diz tudo. Na maior cara de pau, um dos moradores, “veterano” disse que o trote é consentido e toda essa fama é exagerada. Deu ódio da cara de deboche do moleque. Sim, moleque, porque um homem de verdade não precisa humilhar ninguém para ser respeitado. Ah, a prática mais conhecida dessa república é um “sequestro” (sim, há uma “brincadeira” chamada sequestro) que consiste em pegar um grupo de alunos e leva-los a um canavial na calada da noite. Todos nus, ou com roupas íntimas, eles são abandonados no meio do canavial com um galão de pinga – e só. E ai de quem não beber! Daí, eles são obrigados a atravessar o canavial até à estrada que dá acesso à cidade e voltar às suas repúblicas sabe-se lá como. Em uma imagem, as meninas são obrigadas a deitar no chão, de roupas curtíssimas, e passam farinha em seus corpos, como se fossem “empanadas”, e os caras passando a mão como se não houvesse amanhã. Me causou repulsa. Corta. Na parte seguinte da matéria, houve um depoimento de um ex-aluno de Agronomia (por que sempre esse curso? Por quê?) e de sua mãe. O trauma do menino foi tanto que ele abandonou o curso no terceiro semestre (eu ainda acho que ele suportou bastante), está em tratamento psiquiátrico e psicológico até hoje e o relato de sua mãe me deu um nó na garganta. Eu me lembrei da minha mãe, dos momentos de horror que eu vivi e do desespero dela e de minha família.
Como eu disse anteriormente, entrei no curso de Agronomia da Unesp de Botucatu em 2004. Achava que estava realizando um sonho: entrar em uma universidade conceituada, ir embora de São Paulo e ganhar independência emocional, porque a financeira era impossível. O trauma já começou no dia de matrícula. Ao chegar no campus com meu pai e meu tio, visualizamos meninos com cabeças raspadas aleatoriamente, com placas ofensivas penduradas e pinturas idem. As meninas estavam pintadas com “nomes” esdrúxulos. Já comecei a achar estranho, até porque sempre fui bastante “antissocial” nesse quesito. Sempre achei uma selvageria e uma babaquice esse tal de trote. Logo, fui armada para a matrícula. Passei incólume durante toda a matrícula, mas me “pegaram” na saída – mesmo com meu pai e meu tio comigo. Umas meninas vieram me dar os “parabéns”, queriam me “batizar” e perguntar se eu já tinha moradia. Eu já comecei a achar tudo aquilo muito ridículo, mas meu pai fez um gesto de “deixa, tudo bem”. Começaram a me perguntar um monte de coisa a meu respeito para ver se encontravam algum nome bem horrível ou ofensivo para me batizar. Como não encontravam nada de “interessante”, olharam bem para o meu rosto e para a minha boca. Resolveram me batizar de “garrucha”. Por causa da arma de mesmo nome, um bacamarte que possui a boca larga e é carregado por ali, além, claro, do jogador Ronaldinho Gaúcho, cuja principal característica todo mundo conhece. Depois dessa recepção “calorosa”, nos convidaram para conhecer uma república de meninas perto do campus, a Minas Gerais.
Ao chegarmos na república, só havia uma das moradoras, que se mostrou simpaticíssima. Claro, na frente dos pais, todos são uns santos, exemplos de conduta. Achei a casa velha, horrorosa, detonada, podre, tosca. Deu para perceber que meu pai e meu tio não foram muito com a “cara” da casa, principalmente meu tio. Como não conhecíamos absolutamente nada de Botucatu, optamos por ficar nessa república mesmo. Daí começou a semana mais infernal da minha vida até hoje.
Voltamos a São Paulo no mesmo dia, e eu estava mais apreensiva do que feliz depois desse “simpático” dia de matrícula. Os dias foram de um misto de tensão e contentamento e, no dia anterior à primeira semana de aulas, meu tio e minha mãe me levaram para o que seria minha estada de cinco anos em Botucatu. Só havia somente uma das moradoras (não era a “simpaticíssima”, e sim uma “demônia”). De cara, ela me olhou de baixo para cima com desdém e não lá muito educada com minha mãe e meu tio. Ela nos disse para levar minhas coisas num “segundo quarto à esquerda lá em cima” com a mesma simpatia que nos recebeu. Me lembro como hoje que a dita-cuja ouvia Chico Buarque na sala. Passei a detestar mais ainda depois disso, é claro. Me despedi de minha mãe e meu tio e, assim que o carro, dobrou a esquina, o CD termina e ela diz: “Tira o CD pra mim”. Como eu não havia percebido a sua “ordem”, fui tirar o CD do aparelho na boa. Em seguida, chegaram as outras moradoras com uma nova caloura como eu. Fizeram a linha simpatia e, em seguida, pegaram um cesto, cheio de trapos, e disseram: “Agora escolham a fantasia de vocês. Vamos para a república X e, depois, vamos para o pedágio.” Era tudo o que eu não queria, mas quis “me enturmar”. Eu e a outra menina tivemos de escolher a “fantasia”, entramos numa picape de uma das moradoras e fomos para a tal festa. Todo mundo chega perguntando qual o teu “nome”, dizendo que “bixo” não sabe nada, não quer nada e é inútil. E dá-lhe mais pinturas e adereços ridículos. Você perde sua identidade, mas vira uma atração. Você não quem querer, porque, teoricamente, precisa deles. Você é obrigado a se transformar naquilo que a república de Piracicaba remete: um escravo. Um grande detalhe que me chamou a atenção é que grande parte das repúblicas dos cursos da FCA fica em um bairro estritamente residencial, o Jardim Paraíso (que nome mais ingrato). As festas rolam durante a semana, em alto e bom som, invade parte das ruas, e não vi, durante os meses em que estive lá, sequer uma reclamação, uma ronda policial para acabar com as farras. Pelo contrário. Durante o tal do “pedágio”, em uma grande avenida da cidade, os moradores que passavam com seus carros riam das “brincadeiras” e dos “bixos”; uns davam dinheiro, outros davam dinheiro e faziam a linha “bem-vindo a Botucatu”, e outros só riam mesmo. Me lembro de ter conseguido umas moedas, porque “não me empenhei”. Fiquei revoltada em ter de bancar bêbada vagabunda. A partir daí, a coisa só piorou. No dia seguinte, comparecei à aula inaugural da Agronomia e achei tudo muito demagógico: o discurso de “pacificação” do diretor e do centro acadêmico, dizendo que não compactuavam com a prática do trote no campus e tudo mais. Sim, era verdade; mas, e fora do campus? Chamar a polícia que não vinha? Sofrer represálias? É esse “cala a boca” que funciona nas cidades do interior. Todo mundo se conhece, você é batizado justamente para todos saberem quem é você, caso você faça alguma coisa fora dos padrões impostos pelos veteranos. Entretanto, ir à faculdade era melhor do que na república. Voltar para lá era um tormento, pois já sabia o que me esperava: mais humilhações e violações aos direitos básicos. Naquela república, elas convidavam seus amigos para nos conhecerem e ficarem enchendo nossa paciência. No meio da semana, nos levaram a uma outra república para que ficássemos servindo os “gloriosos” veteranos. Detalhe que, nos dois dias anteriores, mal havíamos dormido. Ali, confirmaram nosso “batismo”: ‘Garrucha’ e ‘Gibi’ (porque a garota que morava comigo tem tatuagens). Sim, porque um veterano tem mais poder que o outro, por exemplo: se alguém do terceiro ano o batiza, e o cara do quinto ano achar teu nome legal, ele o confirma; se não, ele escolhe outro nome tão pior quanto o primeiro. Além do batismo e de servir bebidas para vagabundos, eu e a outra menina tínhamos de dançar para entretê-los. Olha, que divertido! E detalhe: no dia seguinte, fomos lá, nós duas, limpar a sujeira da festa depois da aula. Mas a gota-d’água foi quando meu celular tocou e era a minha mãe. Naquela hora, consegui atender, e não aguentei. Ela percebeu o tom de minha voz e começou a ficar desesperada, perguntando o que estava acontecendo, que ela não conseguia falar comigo na república, que uma amiga também tentava falar comigo mas não conseguia. Além de toda essa história de ser empregada, dançarina e garçonete, eu não podia falar com ninguém pelo telefone. No meio da ligação, veio uma das veteranas que estava na festa e pegou o meu celular da minha mão e o escondeu em seu quarto. A noite avançou, e só consegui pegar meu celular de volta, escondido, quando a mesma estava tão bêbada que mal sabia o seu nome. A outra caloura estava tão desesperada quanto eu, e ali combinamos de arranjar uma casa para alugar no dia seguinte e sair correndo daquela república.
Num desses bons acasos, vimos um anúncio na FCA de uma edícula de dois quartos no bairro por um preço ótimo. Entrei em contato com o proprietário, expliquei minha situação, ele nos levou para conhecer a casa e já fechou o negócio ali mesmo. A partir daí, ele foi o uma espécie de guardião, pois ele se ofereceu ajuda caso acontecesse qualquer represália comigo e, inclusive, para nos ajudar na mudança. Quando avisamos que mudaríamos da república, foi o “cúmulo” para as moradoras: que éramos mal-agradecidas, porque elas eram “gente boa”, que nos “ajudaram”, porque havia repúblicas piores, e que não sairíamos assim, de qualquer jeito. Foi aí que começaram as nos humilhar ainda mais (mas o alvo preferencial era eu, que tentava me fazer valer) e, para piorar, tive a pior cólica menstrual de todos os tempos. Elas estavam com tanta raiva de mim que começaram a me ignorar e falar absurdos de mim para seus amigos. Uma menina, que até era legal, tentou me convencer de todas as formas a reconsiderar minha decisão e se mudar para a república dela, que era mais sossegada, segundo ela. Eu não queria mais saber de república nenhuma. Outra menina, a que me apresentou a república no dia da matrícula, cuidava de mim, fazendo chás e compressas para a minha cólica. Não tive nada contra elas, pelo contrário, mas tudo contra as amigas delas. Me mudaram para um quartinho de tranqueiras, dizendo que haveria visita de um namorado delas naquela noite. Claro que não houve visita alguma. Elas chegaram de uma festa, bêbadas, e queriam me acordar jogando um copo com água gelada. Como eu fingia que dormia, abri meus olhos e elas se assustaram e desistiram de “brincar”.
Fui para a aula mesmo assim, morrendo de cólica. As pessoas da minha turma sabiam do que eu estava passando e eu pedi a uma amiga, que tinha carro, para me ajudar na mudança após a aula da manhã de sexta. Graças a ela, me mudei para a edícula na hora do almoço. Entrei muda e saí calada da república. A sala da casa estava cheia de veteranos “brisando”, sem entender nada. Peguei minhas malas e simplesmente saí. Minha amiga Pâmela, a quem eu agradeço sempre, olhava com ódio para eles e respondia rispidamente a suas perguntas. Eles só diziam “nossa, que bixete folgada. Tem que aprender muita coisa ainda”. Daí ela me levou à casa nova: não havia nada, estava sozinha, pois a outra menina estava cumprindo suas “obrigações” como “bixete”. Não me importei nem um pouco em ter dormido no chão, em cima de um cobertor. No dia seguinte, acordei aliviada por ter saído daquele inferno e ter me mudado para um lugar bacana. No sábado, nossos pais foram até Botucatu para levar algumas coisas e nos ajudar na logística da casa. Passada a semana infernal e traumática, a parte da moradia foi resolvida. Mas a da faculdade, não.
O período na faculdade não foi tão infernal porque havia uma certa vigilância por parte da direção. Certa vez, quando chegava ao campus da FCA, encontrei um colega todo maltrapilho, pintado, sujo, com a cabeça cheia de “caminhos de rato”. Seu “nome”? [Melhor não divulgar, porque é muito fácil identificar a pessoa, para a minha segurança e a dela. Só digo que os nomes são relacionados a escatologias e a orientações sexuais. O meu, em vista desses não mencionados, é menos horrível. Afinal, quem se importa em mexer com traumas antigos e incutir novos, não é verdade?] Encontramos o diretor no meio do caminho. Ele, furioso com o que viu, pediu nomes ao menino e a república em que ele morava. Claro que ele não queria dar, porém o diretor pressionou. Eu estava agoniada por ele. Os tais veteranos seriam punidos na faculdade, mas e na república? O que fariam com esse garoto? Me lembro de que ele só falou o nome da república. E identificar os moradores de uma república é a coisa mais fácil do mundo numa cidade como Botucatu. Não sei o que aconteceu depois disso. Só sei que me sentia numa espécie de regime ditatorial.
Enquanto estava tudo bem em casa (na medida do possível), cada saída de aula era um terror. Veteranos “espertos e descolados” esperavam pelos calouros na porta da sala. Os professores não esboçavam reação, pelo contrário, até brincavam com a situação. Ali, era um salve-se quem puder. Os famosos “sequestros” eram iniciados ali. O que acontecia depois que os “sequestrados” entravam no carro, não sei ao certo. Do que me contaram, ou era para fazer pedágio no meio da tarde, ou para fazer a faxina da festa da noite anterior, limpando vômitos e outras coisinhas, fazer “lavagem cerebral” [que consistia em o calouro botar a cabeça dentro de um vaso sanitário e um veterano imbecil dar uma descarga], comer lavagem etc. Pedir carona para voltar para casa também era um tormento, pois corria-se um sério risco de acontecer a mesma coisa. O que minha turma fazia era se organizar em caronas entre os poucos colegas que tinham carro. Cheguei a andar no Uno da amiga que me resgatou da república com mais sete. Com os meninos era ainda pior, a marcação era cerrada. Já vi dez caras em um Civic de um colega de classe. Tudo isso para poder chegar “em casa” e sofrer mais abusos [claro que falo de quem morava em república].
No fim de uma aula, conseguiram pegar a turma toda, inclusive eu. Para fazer o quê? Elefantinho, oras! A brincadeira fofa consistia em fazer uma fila, curvar-se, passar a mão entre as pernas para que o colega de trás a pegasse e caminhar feito uns elefantes. Que gracinha. E cantando baboseiras como “hino da Agronomia”, “pau no cu da Med” etc. O alvo das pérolas do cancioneiro universitário era sempre a Medicina. Acho que rolava uma inveja e frustração de quem inventou e repassou isso. Ah, e tínhamos de andar exatamente por onde os caras queriam, que acompanhavam milimetricamente de suas picapes de agroboy. Ai, se nos largássemos antes da bendita lombada da entrada do campus! Faríamos tuuuudo de novo. E fizemos. Acho que havia sádicos na turma. Certeza. Pois eu tinha colegas que achavam tudo aquilo o máximo. Tortura psicológica? Imagine!
Os meses se passaram e eu odiava o curso cada vez mais. Não me identificava com aquela cidade, com aquela faculdade, apesar de sua excelência. Tinha dificuldade em TODAS as matérias. Não estudava, tirava notas horríveis, claro. Ir para a aula era um sacrilégio. Em casa, a primeira garota saiu e uma amiga muito querida foi morar comigo. Tinha vizinhos ótimos, que tentavam me ajudar de alguma forma, mas não adiantou. Eu não quis esperar chegar o segundo ano do curso para as coisas “melhorarem”. Abandonei o curso no fim do primeiro semestre. Não tranquei, abandonei mesmo, sem o menor arrependimento. Vi muita barbaridade, muita negligência e conivência; vi gente que parou no hospital em coma alcoólico (de praxe) e com traumatismo craniano; vi meninos nus, bêbados e perdidos na cidade; ouvi um relato desesperado de um pai na rádio da cidade sobre o que fizeram com o seu filho; vi matéria da afiliada da rede Globo sobre os trotes na cidade (milagre!), e nada, absolutamente nada aconteceu. E nada vai acontecer sabe por quê? Porque essas mesmas pessoas abusadas, humilhadas, torturadas serão os futuros veteranos e há, nisso, uma espécie de status, uma incumbência em ser o “sinhozinho”, um fetiche pelo pseudopoder, pelo ato de humilhar, pelo sadismo. Gostaria de ver pesquisas a respeito do tema, mas, por incrível que pareça, a academia não estuda essa anomalia de nossa sociedade. Nunca vi um estudo sobre isso. Porque “faz parte do processo de integração”, de formação da vida profissional, não é mesmo?
Claro, que faz parte. É tão importante que não consigo me esquecer disso, mesmo depois de 11 anos, com 30 anos de idade, vivência no exterior, um mestrado e fazendo terapia. Marcou. E ainda dói. Muito. E dói ainda mais ver meninos e meninas se submetendo a esse tipo de “integração”, achando como se fosse a coisa mais normal do mundo. Ver a reportagem da Band me deu um nó na garganta, a mesma que sinto agora ao escrever este texto. Mas sinto-me aliviada em ver que há uma tentativa de combater essas práticas bárbaras, como na Faculdade de Medicina da USP e da CPI. Mesmo que não dê certo (torço para que seja o contrário), tentaram. E o único veículo da mídia que está abordando esse tema, de forma corajosa, é a Band. Espero que dê algum resultado, principalmente se as vítimas pararem de se calar. Não consigo entender como não há veiculação desse tipo de acontecimento. Tem de esperar alguém morrer (como o menino afogado na piscina em 1998) para que vire notícia.

Eu já escrevi a respeito do trote dois anos atrás e alguns ex-colegas da Agronomia, muitos deles que sofreram tais abusos, me escreveram dizendo que “não é bem assim”, que eu estava “exagerando”, que o trote é um “ritual de passagem, de iniciação”, para a inserção do novo aluno na faculdade e na cidade. Que triste. São esses tipos de “profissionais” que nos deparamos por aí. Se já tratam o calouro assim, que dirá o futuro subordinado, por exemplo? Naquela época, me calei. Só queria sair daquele curso e daquela cidade. Foi a melhor decisão que tomei na vida. Ainda bem que a internet está aí para divulgação. Enquanto houver esse tipo de atrocidade a cada início de ano letivo, a cada vez me lembrarei do que passei e farei o possível para divulgar o que está escondido debaixo do tapete. 

sábado, 17 de janeiro de 2015

Da "camarotização", da cafonice e outras vivências

Em uma das minhas postagens anteriores, eu mencionei a minha intenção de viajar no final do ano passado, já que teria férias coletivas do meu trabalho. E foi o que eu e meu marido fizemos: passamos uma semana sensacional no sul da Bahia (Porto Seguro e seus distritos de Arraial d'Ajuda e Trancoso).
Como não queríamos qualquer tipo de muvuca, nos hospedamos em Arraial. Decisão mais que acertada, porque é uma "vibe" completamente diferente da de Porto Seguro, apesar de pertencê-la: tranquilidade, pouco movimento, lojas que funcionam das 16 às 23h, gastronomia diversificada, bom som (ouvi um bom blues num dos becos da vila) e pessoas de conversa fácil. Adoramos o local e muito provavelmente voltaremos nas próximas férias, pois lá conseguimos conciliar tudo o que gostamos – o que não é nada fácil ao viajar. Mas o que me chamou a atenção na minha viagem foram dois pontos: o luxo versus a simplicidade e a visita a uma reserva indígena.

Como alguns devem saber, um tema bastante disseminado e debatido nas redes sociais e de certa forma na mídia foi a "camarotização" da vila de Trancoso, devido a um artigo escrito pela consultora de moda Glória Kalil [Ah, para os amigos de fora do país, essa expressão foi cunhada pela banca de redação do último vestibular da Fuvest, cujo tema foi algo como a "camarotização da vida"]. Dentre vários argumentos bem consistentes, ela resume que todo esse luxo em torno de Trancoso não é nada chique (ela usa chic, fazendo uma alusão ao título de seu livro do mesmo nome). Nunca pensei que um dia eu iria concordar com Glorinha. O link do texto é este aqui:

http://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2015/01/07/camarotizacao-de-trancoso-nao-e-nem-um-pouco-chique.htm http://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2015/01/07/camarotizacao-de-trancoso-nao-e-nem-um-pouco-chique.htm

Como esse artigo foi publicado justamente na época em que viajei para lá, nada mais oportuno dar meu depoimento.

Resolvemos passar uma tarde em Trancoso e fomos de Arraial para lá de ônibus. Coisa fácil, pois ele saía da balsa que vinha de Porto Seguro e passava em frente à pousada em que ficamos. O caminho foi tranquilo, de estrada asfaltada, porque até há pouco tempo era complicado chegar até lá, conforme nos disseram.
Quando o ônibus foi adentrando à vila, reparei que somente a avenida principal era asfaltada e as demais eram de terra. As casas e o comércio eram tão simples, beirando à precariedade, que, na hora, me lembrei da periferia de qualquer grande cidade brasileira. Daí, o ônibus nos deixa no ponto final: a famosa praça conhecida como "Quadrado". O Quadrado nada mais é um extenso gramado com casinhas coloridas e árvores frondosas, com lâmpadas, nas laterais. Há uma igreja histórica e um mirante com vista ao mar e à vegetação. Uma graça. Mesmo. Mas era só isso.
Logo que chegamos, um menino de bicicleta se aproximou de nós perguntando se queríamos que ele nos acompanhasse até o mirante para nos contar a história da vila. Já traumatizados com a fama de "Oscar Freire" de lá, perguntamos o quanto ele cobrava, pois não dissemos tínhamos dinheiro como os outros turistas que lá frequentam [e não tínhamos mesmo, só cartão]. O garoto disse que qualquer dois reais já estava bom. Deixamos que ele nos contasse a história de lá. Ele explicou que na escola da vila há um projeto de formação de guias-mirins para recepcionar os turistas e, com isso, fazer que a história do local não se perca. E realmente ele sabia muito da história desde a invasão portuguesa. Contou-nos a respeito das casinhas coloridas, do valor delas (em média R$ 3 milhões), da construção da famosa igrejinha e nos deu dica de uma praia mais em conta. Eu perguntei ao guia Dionísio das tais celebridades que passam o verão e ele me olhou com certo ar de "ninguém merece esses caras" e ele me disse que estavam para chegar o Neymar e sua irmã [oi? irmã do Neymar é alguma coisa nessa vida, gente? Ou estou por fora?], Lionel Messi, Kate Moss, Naomi Campbell e Felipe Massa. Fora que a Elba Ramalho é praticamente dona da vila. Ele nos contou que seus pais eram de fora [pai gaúcho e mãe mineira, ambos artesãos], como a maior parte dos moradores de lá, e nos mostrou um pequeno cemitério no canto do Quadrado. Ele disse que lá só eram enterradas pessoas nascidas na vila de Trancoso, ou seja, pouquíssimas. Pagamos o que tínhamos para o menino Dionísio, nos despedimos e resolvemos entrar. Toda graciosidade, limpeza e beleza do Quadrado ficaram do lado de fora. Nunca presenciei tal abandono em forma de sujeira, entulhos, valas abertas, túmulos violados e bichos andando livremente por eles. Não dava para saber direito quais eram os túmulos, pois deu a impressão de que eles foram colocados aleatoriamente. Comecei a reparar nas inscrições nas lápides [se é que aquela improvisação toda podia ser chamada de lápide, cruz, ou qualquer outra coisa do gênero] precárias: muita, mas muita gente jovem enterrada, principalmente rapazes da faixa dos 20 anos; havia também muitas crianças e, em seguida, moças jovens. E o que mais me chamou a atenção é que as datas não eram antigas, já que, na hora, me veio a questão da mortalidade infantil, fome, falta de saneamento etc. de décadas atrás. Não. As datas eram de 2009, 2010, 2011. Algumas do início dos anos 2000. Fiquei intrigada e muito, muito triste. Só pensava que algo ali não batia com o que eu via do lado de fora.

Em seguida, fomos em direção à praia. Atravessamos uma passarela sobre um manguezal e ali vimos caranguejos amarelos, vermelhos e azuis. Inédito para mim até então. Chegamos à Praia dos Coqueiros, a mais "em conta" segundo nosso amigo guia-mirim. Caminhamos e atravessamos a foz do rio Trancoso para chegarmos à Praia dos Nativos, a mais badalada de Trancoso. Ela até que estava bem tranquila para uma véspera de Natal. Ficamos por lá mesmo. O mar era de águas verdinhas e mornas [e sem algas e corais, ao contrário de Arraial, repleto delas]. A faixa de areia era bem larga, e boa parte dela era coberta por espreguiçadeiras, cadeiras de praia e guarda-sóis diferenciados dos condomínios e mansões com saída para a praia. A partir do ponto em que estávamos, dava para perceber as coisas para o público tipo Oscar Freire. Bateu uma certa preguiça de ver tudo isso, fomos para o mar e, depois, voltamos para a vila procurar algo menos exorbitante para almoçar. Como eu já estava avisada dos preços das coisas, resolvi dar uma olhadinha no que não me esperava: galerias de arte e decoração, lojas de grife como a Carmim, restaurante tailandês, bistrô de comida sei-lá-o-quê, parada de comida orgânica e restaurantes, digamos, mais "convencionais" [sei lá, salmão marinado no terroir de Bourdeaux acompanhado com arroz-negro de Bali]. Resolvemos comer num quilo na entrada do Quadrado. O valor do quilo era igual ao que eu pago na região do Sumaré para almoçar durante a semana, ou seja: caro, mas "menos" pior. Ficamos mais um pouco e resolvemos voltar para Arraial de lotação. A van começou a percorrer as praias da vila atrás de passageiros. Ruas de areia batida em que um carro pequeno deve sofrer muito para percorrer. Mansões enormes, com portões automáticos e cercas elétricas, as ruas de areia. Condomínios luxuosos aos montes, as ruas de areia. Bacanas fazendo sua corrida de fim de tarde à beira da mata virgem com seus tênis Nike e abdômens sarados nas ruas de areia. Eu olhava tudo aquilo completamente embasbacada e entristecida. Como pode aquele lugar tão bacana, com toda uma história, simples, de gente idem, acolhedora, de papo fácil, ser invadido daquela forma e se transformando numa mistura de Saint-Tropez com Ibiza? Essa foi a pergunta intrigante que ficou no ar. Mais do que uma simples ida a um local com praias, a ida a Trancoso foi uma experiência sociológica.

Em suma, é brega, é cafona esse tipo de luxo atribuído a Trancoso. O lugar em si não tem nada demais. É uma vila de pescadores e só. Mas alguém resolveu dizer que lá é glamouroso e todas as "glamurettes" vão desfilar suas grifes em forma de pano.

Quanto às outras vivências...

Outra coisa que marcou demais foi a ida à Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, em Porto Seguro. Foi uma experiência tão marcante e intensa que não esquecerei. Nunca fui muito ligada em cultura e mitologia indígenas, confesso, mas, ao ouvir a história de luta e resistência daquela etnia, depois ver um de seus rituais e conhecer a sua rotina, passei a respeitar os pataxós. Essa foi a mesma reserva que a seleção alemã visitou na época da Copa do Mundo. Acho que o ritual dos índios deu uma força para o time para ganhar o título...

A experiência foi tão bacana e singular que não há palavras para descrevê-la. Só sei que a visita à reserva foi uma experiência antropológica.

Toda vez que viajo, procuro extrair esse tipo de experiência que une o contraste, o belo x feio, o papo com o morador, comer o que ele come, se "perder" pela cidade, enfim, fazer que isso transcenda a uma simples viagem de férias de fim de ano.