quarta-feira, 12 de junho de 2013

A estante do outro lado

Por volta dos meus oito anos, na antiga segunda série, eu fui, pela primeira vez, à biblioteca da escola onde estudava. Uma vez por semana, tínhamos a aula na "sala de leitura", a qual era conduzida pelo professor Luis (sim, um homem, fato raríssimo na educação de nível primário). Até hoje não me esqueço do estilo meio missionário, meio padre, de uma mansidão, de uma paciência e uma tranquilidade na voz, características das quais é impossível esquecer – até porque tais atributos não vi em mais ninguém até hoje.
Aquele fato não teria sido nada demais se o professor Luis não fosse um daqueles mestres que sacam qual é a de seu pupilo desde cedo. Não sei como, a cada aula, ele me recomendava alguma leitura além das que éramos incumbidos a fazer a cada semana – aqueles livros adequados à nossa idade naquela época, como os da Ana Maria Machado, Eva Furnari, Pedro Bandeira, entre outros. Não me recordo exatamente o que ele me dava para ler, só sei que eu o fazia vorazmente. E ficava de olho em uma estante do outro lado da biblioteca: a estante com as obras da Coleção Vagalume e os clássicos da literatura brasileira e portuguesa. Eu não via a hora de ter a idade "adequada" para pegar um daqueles livros que  me chamavam tanta atenção. E o sábio professor Luis sabia dessa minha curiosidade.
Um dia, peguei coragem e fui fuçar naquela estante. Um título me chamou a atenção: "Morte e vida severina". Ao pegar naquele livro, logo fui pensando que se referia a uma mulher chamada Severina. O professor Luis se aproximou, pegou o livro das minhas mãos e disse: "Você ainda não pode tomá-lo emprestado, mas pode dar uma olhada." Em seguida, com seu rosto bondoso, me disse: "Ainda terá muito tempo para ler tudo isso aqui. Vai gostar."
Ao folhear aquelas páginas, o primeiro verso da obra me chamou tanto a atenção que, até hoje, não me esqueço: "Meu nome é Severino. Não tenho outro de pia" Óbvio que não entendi o que aquilo queria dizer, só sei que me marcou. Eu li a obra muito tempo depois, na época do vestibular, porém sem aquele brilho e entusiasmo dos meus oito anos. Mas reconheço o valor dessa obra. Não sou fã ardorosa de poesia, mas esse poema é um petardo.

Além de me estimular a querer ler o que tinha na estante do outro lado, o professor Luis sempre me incentivava a pensar sobre o que eu estava fazendo na escola, o que eu via na TV, o relacionamento com os outros colegas, etc. Inclusive, eu tinha uma rixa com um menino que era um daqueles inteligentes e exibidos. Tínhamos uma disputa acirrada e declarada. Eu, competitiva que sou, sempre chegava com alguma coisa a mais nas aulas, a fim de acabar com o moleque – que detestava, diga-se de passagem. A competitividade é intrínseca a mim, fazer o quê! Voltando ao estímulo ao pensamento, eu sou muito grata à postura que o professor Luis tinha comigo (claro que com os outros ele era ótimo também). Acho que ele, talvez, lá atrás, havia percebido que eu iria me enveredar nesse mundo das letras. E nunca me esqueço daquela estante do outro lado da sala de leitura, que me instigava a descobrir um mundo até então desconhecido. Posso não ser aficionada por literatura atualmente, mas aquela época foi essencial à minha formação.